quarta-feira, 23 de abril de 2008

Sob tons alaranjados

A escova passava por seus cabelos brancos e a luz do sol os prateava. Era assim todo fim de tarde, mesmo antes dos fios brancos ou dos acinzentados, a janela pra rua era como uma moldura para os tons do pôr-do-sol refletidos sobre seu rosto. Clarice não usava relógio, nunca se importou muito com o passar do tempo, mas sempre repetia as palavras de Mário Quintana: "O tempo não pára, só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo". Todos sabiam da espera de Clarice, era a história contada aos visitantes da pequena cidade de Bela Vista, ela não se importava, nunca se importou.
O céu começava a se pintar de tons alaranjados quando a pequena Clarice se sentou na janela e viu um menino de cabelos cacheados entrando na casa do outro lado da rua, era Arturo. Ela havia ouvido sua mãe dizer que o neto de Dona Helena chegaria hoje da grande São Paulo para morar ali, ouviu também que ele tinha perdido os pais em um acidente de trabalho. "Sempre soube que aquelas máquinas engoliam as pessoas" pensava Clarice que via cada vez mais suas amigas se mudando pra São Paulo com os pais.
Arturo se sentava na janela todo pôr-do-sol como em um ritual, um ritual de espera pelos pais que nunca iriam voltar para buscá-lo. Clarice se sentava na janela de sua casa e ficava olhando a beleza triste do menino, até o sol desaparecer completamente e ver o moço da querosene acendendo as lamparinas da rua, "Clarinha, entra pra casa que o céu já tá pronto pra ir dormir" e ela obedecia às palavras do moço. Quando chegaram as férias já não existia Clarice sem Arturo nem Arturo sem Clarice, era como ver um romance com personagens em miniatura. Cada paralelepípedo das ruas daquela cidade conhecia os passos apressados dos pés deles, Clarice havia aprendido a gostar de ler com Arturo e Arturo havia aprendido a sorrir com Clarice. Eram dias na cachoeira, dias na biblioteca, dias na pracinha, dias correndo pela cidade. Mas os finais de tarde eram sempre iguais, Arturo e Clarice se sentavam nas janelas de suas casas e permaneciam ali até o sol sumir.
O tempo passava e os joelhos já não voltavam mais pra casa ralados. Clarice chegou na biblioteca chorando, disse que era por causa de seu pai, "Ele diz que não acha bom filha dele andando com rapazinho o dia todo, que eu não sou mais criança", Arturo a abraçou e ela sentiu pela primeira vez as borboletas no estômago. Foi então que Clarice se encantou pelo nome poético de seu amigo de infância e em cada livro que lia a mocinha era ela e o mocinho era ele. O Baile de Primavera da escola estava chegando e Arturo convidou Clarice para ser seu par. Na noite do Baile, Arturo foi buscá-la em casa e seus olhos brilharam ao vê-la em um longo vestido de cetim azul. Dançaram, riram falando sobre seus colegas de escola e em todas as vezes que o silêncio surgia, a boca de ambos ficava seca e desviavam o olhar.
Estavam correndo e rindo baixo quando chegaram à porta da casa de Clarice. Ficaram em silêncio. Arturo pegou as mãos de Clarice, a olhou nos olhos e a beijou. Clarice entrou em casa e as borboletas em seu estômago pareciam ser impossíveis de controlar. Agora os finais de tarde na janela mostravam dois jovens e um segredo.
Clarice acordou assustada ouvindo gritos na rua, era a voz de Arturo. Dona Helena havia falecido e ele estava sendo levado de volta pra São Paulo para morar em um Orfanato. "Clarinha, eu vou voltar! Espera por mim" e em meio a lágrimas o carro levou Arturo e o coração de Clarice. O tempo passou e Clarice não foi de mais ninguém, ela pertencia às cartas que relia sempre e às histórias que escrevia. Todo final de tarde se sentava à janela e esperava, até o sol sumir.
A escova passava por seus cabelos brancos e a luz do sol os prateava. Era assim mesmo antes dos fios brancos ou dos acinzentados, a janela pra rua era como uma moldura para os tons do pôr-do-sol refletidos sobre seu rosto. Clarice olhava para a rua quando viu Arturo chegar. Ele não era o mesmo rapaz que havia ido embora, tinha em seu rosto marcas do tempo e seus cabelos cacheados agora eram brancos, mas era ele, era o herói das histórias dela. Clarice sentiu seu coração bater mais forte e as borboletas, ah! as adormecidas borboletas, haviam voltado. As ruas já não eram mais de paralelepípedo, não era preciso acender mais lamparinas todas as noites e a janela agora servia de moldura pra dois velhinhos que assistiam todo dia o pôr-do-sol juntos.

3 comentários:

Laura R. disse...

Final Alternativo:
Foi assim, em uma primavera ainda gelada que Clarice se sentou à janela e viu Arturo chegar. Ele não era o mesmo rapaz que havia ido embora, tinha em seu rosto marcas do tempo e seus cabelos cacheados agora eram brancos, mas era ele, era o herói das histórias dela. Clarice sentiu seu coração bater mais forte e as borboleta, ah! as adormecidas borboletas, haviam voltado. As ruas já não eram mais de paralelepípedo, não era preciso acender mais lamparinas todas as noites e a janela agora servia de moldura pra dois velhinhos que assistiam todo dia o pôr-do-sol juntos.

Anônimo disse...

eu não sirvo pra fazer críticas, gosto de tudo que você escreve.

Laura R. disse...

Narração; Tema: Tempo

COMENTÁRIOS DO AVALIADOR:
Laura, seu texto ficou muito bom. Você trabalhou bem o tempo em sua narrativa. Atenção ao uso de vírgula. Parabéns pelo talento! Leia sempre!
NOTA: 98